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Os 50 anos do Balé da Cidade: primeiro diretor negro e racismo na plateia

Ismael Ivo (diretor e coreógrafo do Municipal, Eliane Dias (centro) com uma parte do grupo de 50 mulheres; além de outros convidados - Amanda Serra/UOL
Ismael Ivo (diretor e coreógrafo do Municipal, Eliane Dias (centro) com uma parte do grupo de 50 mulheres; além de outros convidados Imagem: Amanda Serra/UOL

Amanda Serra

Da Universa

16/09/2018 14h32

Foi uma noite especial para 50 mulheres nos 50 anos do Balé da Cidade, que se apresentou nessa sábado, 15, no Theatro Municipal de São Paulo. A plateia, pela primeira vez, era formada por uma maioria de espectadoras negras, que vieram de Itaquera, São Miguel Paulista, São Matheus, Diadema, Guarulhos e Freguesia do Ó. Nada mais representativo para a estreia do espetáculo “Sagração da Primavera”, dirigido por Ismael Ivo, primeiro coreógrafo negro a ocupar o cargo de diretor do balé do Theatro, que existe há 107 anos.

“Só estamos aqui porque temos um negro nos representando e tive abertura para conversar com ele e expor minha ideia”, diz Eliane Dias, coordenadora do SOS Racismo da Assembleia Legislativa do Estado de SP e sócia da Boogie Naipe, produtora responsável pelos Racionais MC’s.

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Assim que soube que iria dirigir o espetáculo em comemoração ao aniversário do teatro, Ismael chamou Eliane para conversar, que na hora pensou: ‘São 50 anos do Balé da Cidade e gostaria de trazer 50 mulheres negras. Vou pedir os ingressos para Prefeitura.’ O coreógrafo ficou animado e ele mesmo cedeu as entradas para a advogada, casada com Mano Brown.

“Esse balé remete à mulher negra. A forma que rezamos, que invocamos Deus, as cores, as folhas. É muito próximo do nosso cotidiano e é uma pena que não ocupemos esse espaço”, completa Eliane, que convocou os coletivos com os quais trabalha e organizou a excursão.

Primeira vez no teatro em 49 anos

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Imagem: Amanda Serra/UOL

“Tira uma foto minha aqui, mais uma. Agora assim... Nessa janela. Já pesquisei sobre esse balé e vi que é ótimo.” A noite ficará na memória da assistente social e gestora pública Raquel Brasil, 49. E nada melhor, para ela, do que eternizar sua primeira vez no teatro em uma foto posada com seu blazer verde, combinado com uma saia longa de couro fake e recortes de jeans feita especialmente para ocasião.

“A acessibilidade para quem é negro, pobre e da periferia é outra realidade. Uma pessoa que sai da Zona Leste, Itaquera, chegar aqui não é fácil. Estar aqui é um marco, é a visibilidade da população negra, em um espaço que também nos pertence. Vai ficar para história”, diz Raquel, que saiu de casa às 17h30 (o espetáculo começava às 20h) e foi buscar as companheiras do projeto Lerato, de costura, que preside. Paulistanas, elas também estreavam no espaço, símbolo da capital, e não economizaram nos registros fotográficos para as redes sociais. 

Uma das mais novas do grupo, a estudante Thailla Arruda, 20, saiu de São Matheus, no extremo da Zona Leste, para ver seu primeiro balé no Municipal. “É um acesso que é negado para nós, jovens negros da periferia. Disseram para gente que nossa cultura não está aqui. Por isso, estar aqui é se fazer pertencente do que é nosso também. Estamos aqui como resistência”, diz ela, que faz parte do coletivo de pesquisa e cultura de afrobrasileira Èwe.

Não é mimimi

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Imagem: Amanda Serra/UOL

Raquel e Thailla têm razão quando dizem que suas presenças como convidadas, em espaços tidos como da elite, ainda incomodam. Assim que Ismael subiu ao palco para falar sobre a estreia do espetáculo que dirigiu, e para ressaltar que aquela ‘Primavera’ ali não se tratava apenas de algo lúdico, mas retratava um momento de transição do qual todos serão responsáveis em outubro – se referindo às Eleições  --, um senhor branco, sentado à frente da reportagem, manifestou seu incomodo.

Ao ouvir o discurso bailarino, reclamou: “Daqui a pouco ele fala daquela mulher que foi assassinada no Rio de Janeiro”. Ele não bateu palma nenhuma vez e foi embora antes dos aplausos finais. Muito provavelmente, se referia à vereadora Marielle Franco, morta com quatro tiros na cabeça. Após seis meses do crime, os culpados ainda não foram identificados.

No palco, Ismael continuou: “Temos uma democracia em processo de amadurecimento. Nós todos somos responsáveis para construirmos, com as pessoas que vamos eleger, um país realmente melhor”.  Não poderia ter sido mais certeiro em seu discurso para abrir a noite que já tinha começado política.