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"Fui vítima de escalpelamento e ajudo mulheres que também perderam cabelos"

Balbina Figueiredo sofreu o acidente durante a infância - Arquivo Pessoal
Balbina Figueiredo sofreu o acidente durante a infância Imagem: Arquivo Pessoal

Bárbara Therrie

Colaboração para Universa

08/09/2018 04h00

Balbina Figueiredo, de 31 anos, não aceitava as sequelas do acidente que sofreu na infância, quando o eixo do motor de um barco arrancou parte do seu couro cabeludo. “Eu me achava feia e perdi a autoestima”. Nesse depoimento, ela compartilha suas dificuldades e conta como confeccionar perucas para mulheres que passaram pela mesma dor que ela, a ajudou no seu processo de superação:

“Fui vítima de escalpelamento aos 11 anos de idade. Estava em um barco com a minha família, voltando do centro de Anajás, na Ilha do Marajó, no Pará, para casa quando deitei no assoalho para descansar. A viagem era longa. Dormi e, ao virar de lado, -- havia uma fresta entre as tábuas --o eixo do motor arrancou parcialmente meu couro cabeludo. Meu tio estava de frente para mim e conseguiu desligar o motor a tempo do estrago ser ainda maior.

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Jovem teve os fios arrancados pelo motor de um barco
Imagem: Arquivo Pessoal

Eu desmaiei e só lembro de ter acordado no colo da minha tia, com a roupa toda ensanguentada e com um pano enrolado na cabeça. Todos estavam desesperados. Eu fiquei confusa e comecei a chorar. Sabia que algo tinha acontecido, mas não tinha certeza do quê. Senti uma dor forte na cabeça. Minha visão ficou embaçada, meu rosto roxo e o corpo machucado e inchado.

O acidente ocorreu por volta das 11h, mas só consegui chegar ao hospital às 17h, onde recebi os primeiros socorros, curativos e medicação para aliviar a dor. Como a cidade era pequena, não havia profissionais capacitados para lidar com o meu caso, que foi o primeiro de escalpelamento registrado em Anajás. No dia seguinte, eu e minha mãe fomos de avião para Belém, onde fiquei internada por um mês e meio num hospital mais estruturado.

Parei de estudar porque as crianças me zoavam por não ter cabelo

Com 45 dias, fiz a primeira cirurgia reparadora. Os médicos rasparam o meu cabelo e fizeram um enxerto no couro cabeludo com a pele da minha coxa. Fiquei deprimida ao me ver careca, só chorava. Eu perdi minha feminilidade e minha autoestima. Era como se estivesse faltando uma parte de mim. Eu me olhava no espelho e parecia um menino. Me achava feia e não me aceitava. Antes do acidente, meu cabelo era lindo: liso, comprido e castanho.

Durante anos, usei lenço, touca e chapéu para tentar esconder o que tinha acontecido comigo. Na escola, as outras crianças me zoavam, me chamavam de careca e mexiam na minha cabeça. Eu não conseguia me defender. Falei para a minha mãe que não iria mais à escola.

Eu parei de estudar na quarta série, aos 11 anos, e só voltei aos 15. Estudei por mais um ano e tive que largar os estudos porque me mudei para Belém, em busca de tratamento. Fiz nove cirurgias reparadoras. Era um processo dolorido, às vezes o couro cabeludo rejeitava o procedimento.

Depois do escalpelamento, meu cabelo nunca mais foi o mesmo. Não cresce mais pelo do lado esquerdo, região atingida pelo eixo do motor. Na outra parte, o cabelo cresce ondulado e lentamente. Ele é fraco e bem ralinho. Quando ele chegou à altura do ombro, deixei de usar lenço e chapéu, mas só o usava preso, fazia coque ou rabo de cavalo. Nunca usei peruca. Além de ser caro, achava que nenhum modelo combinava comigo. 

Sofria preconceito e não tinha vontade de sair de casa. Evitava ir à praia porque, se mergulhasse, a água evidenciaria as cicatrizes e falhas do meu cabelo. Eu morria de vergonha. Não falava sobre o assunto com ninguém, me fechava e isso atrapalhava o meu relacionamento com as pessoas. Era tímida e insegura.

Resgatei minha autoestima ao colocar alongamento: me sinto bonita e livre para ser feliz

Balbina Figueiredo - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Balbina deixou de ir à escola por sofrer bullying
Imagem: Arquivo Pessoal

As coisas começaram a melhorar em 2011, quando conheci a ORVAM (Organização Não-Governamental dos Ribeirinhos Vítimas de Acidente de Motor). Fiz um curso de peruqueira e me tornei voluntária da ONG, cujo objetivo é resgatar a autoestima de vítimas de escalpelamento. Na ORVAM, recebemos doações de cabelos naturais e confeccionamos perucas para doar às mulheres.

O trabalho na instituição me ajudou no meu processo de aceitação. Consegui me abrir e compartilhar meus sentimentos em relação ao meu acidente. Conheci outras pessoas que passaram pela mesma dor que eu. Trocamos experiências e criamos uma rede de apoio.

Resgatei minha autoestima quando coloquei o alongamento. Eu me senti bonita e recuperei a minha feminilidade. Às vezes, até esqueço que sofri o acidente. Ter meus cabelos de volta –ainda que com o alongamento-- representa vida nova e superação. Hoje, me sinto livre para ser feliz e me aceitar do jeito que sou."