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Bronca em Abdelmassih e bisturi no pescoço: casos de uma médica de presos

Tatiana Malavasi, diretora do hospital penitenciário de SP - Simon Plestenjak/UOL
Tatiana Malavasi, diretora do hospital penitenciário de SP Imagem: Simon Plestenjak/UOL

Luiza Souto

Da Universa

15/08/2018 04h00

Primeira diretora-técnica mulher do Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário de São Paulo, a paulistana Tatiana Malavasi Sales, de 41, conta que escolheu se especializar em cirurgia por ser um ambiente predominantemente masculino. “Para mim, é mais fácil trabalhar com homem”, opina, de fala rápida e forte. Mãe de um menino de 10 anos e uma menina de 6, conta que já precisou se defender de assédio, mas mudou seu jeito e ficou mais durona. No hospital em que atende os presidiários de São Paulo, e onde 60% dos profissionais são homens, encarou ameaças e também recebeu condenados cujos casos tiveram grande repercussão, como o do ex-médico Roger Abdelmassih, condenado por estuprar as pacientes.

O Hospital Penitenciário realiza exames como raio-x e ultrassom, recebe presidiários de outros hospitais para internação e cuidados especiais, como reabilitação e infectologia. Cuidados que não podem ser feitos dentro da prisão. São 251 leitos divididos em quatro alas: três masculinas e uma feminina. Hoje são 150 internados. Dos 64 médicos, 26 são mulheres (40%), distribuídas em todas as especialidades.

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Relação entre paciente e equipe médica
"De uma forma geral, os pacientes respeitam muito a equipe de saúde, mas um ou outro foge da curva, e nessas horas eu sou a 'carrasca'. Quem entra para resolver os problemas disciplinares sou eu. Na última semana, uma paciente da penitenciária de Tremembé chegou tetraplégica, com suspeita de Guillain-Barré, mas maltratando todo mundo, xingando. Entrei e falei: 'sou chefe de todo mundo aqui. Por mim, sua alta estava assinada hoje. E pode engolir o choro que você não me comove'. Não exponho equipe médica. Quando pacientes dão muito problema, dou alta. Disseram que ela era irmã, uma gíria de uma facção criminosa que até então não conhecia.  'Pode ser irmã, sogra, prima, mãe, mas aqui você vai se comportar como paciente. Não faz diferença para mim'. Agora ela está uma pluma."

Ameaças de dentro
"Fui visitar os pacientes e um deles estava todo roxo, incluindo o olho. Disse que caiu da cama. Quando falei que ia transferi-lo para a semi-intensiva, um funcionário disse que ele não precisava ser transferido. Falei que quem decide as coisas ali sou eu. No dia seguinte, me ligaram e falaram que eu não entendia como funcionava o lugar e que era melhor eu ficar dentro da minha casinha. Foi bem assustador. Entrei sozinha para falar com o piloto, que é uma espécie de referência na ala, para saber se era o PCC me ameaçando, mas não, era alguém de lá de dentro mesmo."

Ameaças de fora
"Um juiz ligou aos berros porque queria que eu fizesse laudo pericial em um paciente, e a gente não pode periciar o próprio paciente. Ele disse que ia me prender e eu falei: 'pode prender. Prefiro me justificar perante a Justiça a perder meu CRM'. A procuradoria também me procurou pedindo prontuário de um paciente que morreu aqui porque a família está processando o Estado. Não posso! Falei para pedir para o juiz. Não mudo minha forma de agir. Pode vir PCC, advogado, juiz. Ainda bem que nunca tive que ser chamada por secretário de saúde ou governador."

Tatiana Malavasi é diretora do hospital penitenciário de SP - Simon Plestenjak/UOL - Simon Plestenjak/UOL
Tatiana Malavasi é diretora do hospital penitenciário de SP
Imagem: Simon Plestenjak/UOL

Seguro de vida
"Em 2012, a gente recebia as presidiárias que amamentavam e, na época, havia 124 mulheres com 124 crianças.  Estava grávida da minha filha e passava muito mal, então deixei de visitá-las. Um dia me ligaram e falaram: 'a senhora precisa entrar aqui'. Entendi que era uma espécie de ameaça e me assustei. No dia seguinte fiz um seguro alto de vida. Ligaram no meu telefone particular, né? Mas não cedi à ameaça."

Presos com casos de grande repercussão
"Atendi alguns famosos: o ex-juiz Nicolau dos Santos Neto, o 'Lalau' (preso em 2000 pelo desvio de cerca de R$ 170 milhões durante a construção do Fórum Trabalhista de São Paulo), que veio para uma consulta com cardiologista; e Abdelmassih, que ficou ano passado por dez dias. Queria um monte de coisa: que a mulher, advogada, tivesse livre acesso na semi-intensiva, assim como os filhos, e criança aqui não entra. Pediu ainda dieta especial, remédio diferente, tudo diferente. Desci, me apresentei e ele veio com um 'somos colegas'. Respondi: 'não sou sua colega, não te respeito nem te reconheço como colega, então nossa conversa é de paciente e diretora-técnica. As regras são essas e o senhor não acha nada. Não venha querer discutir sua quinoa aqui'."

Presos se ferem para não sair
"Alguns presos insistem deliberadamente, outros inventam sintomas para não voltar para a prisão. Já vi paciente com termômetro encostado na lâmpada para simular febre. E hoje não damos mais ponto simples numa cirurgia porque eles abrem para ficar um pouco mais. Ontem um outro passou lâmina no pescoço para não sair daqui, mas foi um corte superficial. Acontece."

Recusa de atendimento
"Pode recusar atender paciente, se você não se sentir seguro, desde que o paciente não esteja correndo risco de vida. Esse sentimento de ameaça pode atrapalhar na decisão terapêutica, mas é preciso registrar sua decisão e mandar outro médico no lugar. Eu não conseguiria atender o Abdelmassih. Dei graças a Deus que eu não era médica assistente dele. Não conseguiria ser imparcial. Não vou ser hipócrita dizendo que ia tratá-lo. Claro que não justifica, mas é comum o preso chegar aqui com todo um histórico de violência. Um dia desses um condenado por tráfico, de 22 anos, chegou todo arrebentado, cheio de tiro, e eu falei para ele aproveitar que a vida estava dando outra chance. Ele falou que era a única coisa que sabia fazer na vida. Os pais também estavam presos por tráfico. Aí você pega o Abdelmassih, com todo recurso, respeitado, e que se valeu disso para virar psicopata?"

Pacientes mulheres
"Hoje são dez internadas. Seis por tráfico, duas por homicídio e duas por assalto. A maioria não recebe visita e diz que tomou culpa por algum crime do companheiro, como tráfico. Uma paciente matou o ex-marido por maus-tratos. São muitas histórias de amor ao parceiro e nesse ambiente você percebe que culturalmente, nesses nichos, ser amigo, namorada ou pipa (o aviãozinho, que leva e traz mercadoria) de traficante é status."

Assédio
"Aqui nesse hospital nunca sofri assédio, mas durante a residência de cirurgia-geral, fui assediada algumas vezes. No primeiro caso, surtei. Cheguei a pegar um bisturi para me defender. Fui dispensada de fazer residência com ele - o que é um absurdo, porque o cara continuou lá. Depois desse caso, rolaram mais umas três vezes e aí endureci um pouco meu jeito. Nunca mais aconteceu."