Topo

Ela rejeitou colocar próteses nos braços e cuida do filho com os pés

A psicóloga Lucinéia Baltazar nasceu sem o braço direito e parcialmente com o esquerdo - Arquivo pessoal
A psicóloga Lucinéia Baltazar nasceu sem o braço direito e parcialmente com o esquerdo Imagem: Arquivo pessoal

Bárbara Therrie

Colaboração para Universa

31/05/2018 04h00

A psicóloga Lucinéia Baltazar, 36, nasceu sem o braço direito e parcialmente com o esquerdo. Sem aceitar sua deficiência, o sonho dela era colocar próteses nos braços para ser “normal”. Quando estava perto de realizar esse desejo, porém, desistiu de tudo. Nesse depoimento, ela explica por que tomou essa decisão e conta como cuida do filho pequeno.

Não aceitava minha deficiência e entrei em depressão

“Nasci com a malformação congênita dos membros superiores. Aprendi a desenvolver habilidades com a mão e os pés. Na infância, minha mãe era super protetora e fazia tudo por mim. Me levava ao banheiro, me dava banho, me arrumava.

Veja também

Na adolescência, não aceitava a minha condição. Minha família não me deixava sair, passear, namorar, porque eles achavam que alguém poderia se aproveitar de mim. Eu me questionava por que todo mundo podia ser normal, e eu não. Evitava me olhar no espelho porque me achava feia. Eu só tirava foto do rosto e usava blusa de manga. Nessa fase eu entrei em depressão e tentei o suicídio. A única solução que eu via para mim era a morte. Cheguei no fundo do poço.

A psicóloga Lucinéia Baltazar nasceu sem o braço direito e parcialmente com o esquerdo - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Um tempo depois, minha tia Marinalva e minha prima Luciana me visitaram no Paraná e falaram que iriam conseguir dois braços mecânicos para mim. Era meu sonho. Fui para São Paulo e fiquei seis meses morando com a minha tia até fazer todos os testes e treinamentos.

Não eram dois braços que determinariam o meu valor e a minha felicidade

No dia em que experimentei as próteses, tive uma sensação ruim, me senti um robô. Era como se aquilo não fizesse parte de mim. Tive um insight e desisti de tudo. Cheguei à conclusão de que se Deus me criou assim é porque ele tem um propósito. Percebi que não seriam dois braços que determinariam o meu valor e a minha felicidade. Decidi continuar do que jeito que eu era.

Voltei para o Paraná e fui em busca da minha independência. Comecei a estudar, a trabalhar, fui morar sozinha. Fiz duas faculdades, de Serviço Social e de Psicologia. Na universidade, fui vítima de preconceito. Durante uma discussão, uma colega usou a minha deficiência para me xingar e ofender. Fiquei profundamente magoada. 

Em 2013, conheci o meu marido, o Osvalmir, pelas redes sociais. Antes de marcar o primeiro encontro, eu perguntei a ele: “Você viu como eu sou?”. Inicialmente ele não tinha entendido a pergunta. Ele reviu as minhas fotos e disse que só tinha reparado no meu sorriso. Me falou que não se importava de eu não ter os braços.

Trocava a fralda, roupa e dava banho no meu filho com os pés. Ele se moldou a mim

Com cinco meses de namoro, descobri que eu estava grávida do Khauã. Na gestação, eu a passava a mão na minha barriga e conversava com o meu filho sobre a minha deficiência. Dizia que a mamãe era diferente e que precisaria da colaboração dele. Falava que o amava e que cuidaria dele mesmo com as minhas limitações.

A psicóloga Lucinéia Baltazar nasceu sem o braço direito e parcialmente com o esquerdo - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Quando o Khauã nasceu, tive de lidar com a desconfiança das pessoas. A primeira situação aconteceu no hospital. Ele estava chorando com cólica e a enfermeira não quis colocá-lo no meu colo com receio de eu derrubá-lo. Eu insisti e o coloquei entre o meu pescoço e o meu braço esquerdo. Ele sentiu o calor do meu corpo, se acalmou e parou de chorar. Eu falei para ela nunca julgar uma pessoa pela aparência.

No início, minha família também ficou com medo de eu não dar conta. Meu irmão insistiu que eu deveria contratar uma babá, mas eu disse que ele estava tirando o meu direito de ser mãe e que eu tinha condições de cuidar do meu filho. Com cinco dias de vida do Khauã, pedi ao meu marido para pegar algo e aproveitei para trocar a fralda dele com os meus pés. Ele nem estava sujo, mas fiz isso para provar que eu era capaz.

Nosso vínculo de mãe e filho era tão forte que ele sempre colaborou comigo desde bebê. Para trocá-lo, eu colocava um travesseiro e um colchão forrado no chão e o deitava. Sentava num banquinho e trocava a roupa dele com os pés. Ele ficava quietinho. Era como se ele entendesse que eu precisava da ajuda dele. Ele se moldou a mim. Quando o meu marido o trocava, ele ficava agitado.

Minha maior realização foi dar banho nele pela primeira vez quando ele tinha três meses. Minha vizinha dava um banho à tarde e o meu marido à noite. Um dia ele estava com febre e nós estávamos sozinhos. Levei a banheira para o quarto, enchi de água, coloquei ele deitado em cima do meu pé esquerdo e lavei com o direito. Liguei para o meu marido e contei o que tinha feito. Ele ficou feliz. Sempre me apoiou e confiou em mim como mãe.

O amor próprio fez eu me aceitar e me tornar independente

Hoje o Khauã está com três anos e nove meses e é muito comportado e carinhoso. Quando saímos, ele não corre, segura na minha mão, não faz birra para comer e limpa a minha boca com o guardanapo quando eu termino uma refeição. Ele é meu companheiro.

A psicóloga Lucinéia Baltazar nasceu sem o braço direito e parcialmente com o esquerdo - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Apesar de não ter os braços, faço tudo que uma pessoa faz. Cuido da minha família, limpo a casa e tenho a minha profissão. Não sinto mais vergonha da minha aparência, me acho bonita e sou bastante vaidosa. Faço a minha unha, sobrancelha, maquiagem e escova no cabelo.

Criei um canal no YouTube (Lucinéia Baltazar) para mostrar um pouco do meu dia a dia e incentivar as pessoas com deficiência a serem independentes. Passei a me aceitar quando entendi que precisava me amar para depois ser amada. Ao fazer isso, vemos o mundo com outros olhos e temos força para superar todos os obstáculos e buscar nossa felicidade”.