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"Tenho pena dos brasileiros", diz Pilar del Río sobre situação política

Pilar del Río - Gabo Morales/UOL
Pilar del Río Imagem: Gabo Morales/UOL

Marcela Paes

da Universa

07/03/2018 18h59

Pilar del Río recebe Universa na véspera do dia 8 de março e ela está empolgada. Um dos motivos é justamente a data, que marca o Dia das Mulheres no mundo todo. A viúva do escritor português José Saramago está ansiosa pela greve geral preparada por milhares de espanholas. “Olha aqui, que lindo. Me emociono, é muito bonito”, diz ela, chorando, ao mostrar vídeos de passeatas e teasers preparados por suas companheiras feministas. 

As imagens armazenadas em seu celular também estão em uma troca de mensagens com Manuela d’Ávila, candidata à presidência pelo PCdoB. Além de Manuela, a ex-presidenta Dilma Roussef e o deputado Jean Wyllys fazem parte do círculo de amigos da espanhola. “Gostei da candidatura da Manuela porque era algo que ela queria. Assim como aprovo a do [Guilherme] Boulos. A esquerda é plural, não somos todos iguais”, explica a jornalista, que vai participar de um ato com a candidata.

Mas Pilar não está no Brasil para fazer (somente) política. Ela veio para a inauguração da exposição “Saramago - Os Pontos e a Vista”, sobre o amor de sua vida. A mostra em cartaz no Farol Santander conta com objetos pessoais do vencedor do prêmio Nobel de Literatura e um vasto arquivo audiovisual. Muitas das imagens são produto do filme "José e Pilar", um retrato da relação do casal. O outro motivo é o relançamento pela Cia Das Letras de todas as obras do autor português. A caligrafia de nomes como Chico Buarque, Sebastião Salgado, Fernanda Torres e Raduan Nassar dará corpo aos títulos na capa das obras. 

Animada, Pilar prolonga o bate-papo sobre feminismo. E resume em uma frase tudo o que não deseja para qualquer mulher no dia 8 de março: uma rosa. “Se um homem me dá uma rosinha, eu faço assim 'pá!', diz, fazendo gesto de um tapa na cara.  “Alguém que vem com uma rosa não sabe do que estamos falando. É sobre igualdade de condições. Quem é o ser humano que tem mais direitos no mundo? O Papa? Queremos ter igual”.

Leia abaixo a entrevista:

UOL: Como será essa greve geral na Espanha?

Pilar del Río: A greve foi sendo preparada espontaneamente, foram grupos de lugares diferentes. São profissionais, partidos de esquerda, escritoras, jornalistas. Queremos ir contra a violência que mata as mulheres, o trato vexatório que as mulheres recebem mas, sobretudo, é para dizer que existimos. Estamos aqui e somos. As leis têm que mudar. Essa greve é para dizer: se nós, mulheres, paramos, o mundo para.

A Espanha nunca teve uma chefe de governo….

Isso é terrível. Na América Latina a situação é parecida. Na história da maior parte dos países nunca acharam que uma mulher estivesse preparada para assumir a representação do governo? O Brasil precisou de 200 anos, o Chile, Argentina também... Mas os demais países ainda não. Até o Berlusconi estava preparado, mas nenhuma mulher? Nos Estados Unidos está preparado este palhaço, o Trump? E eliminaram especificamente uma mulher, a Hillary Clinton. Quando vem uma mulher, ela se submete ao critério masculino. E se não se submete, acaba indo embora. No caso de Dilma, a impicharam, por exemplo. Não foi só pelo fato de ser mulher, mas se fosse um homem não teriam feito isso.

O que você achou da candidatura da Manoela d'Ávila?

Eu gostei porque era algo que ela queria. Assim como aprovo a do Boulos. Eu acho que somos plurais. A esquerda é plural. 

O que você acha dos movimentos feministas como o das atrizes de Hollywood?

Bendito o dia em que a primeira mulher contou que tinha sido assediada. Era absolutamente necessário porque nós todas sofremos isso. Eu também. Sofremos com os olhares, os assédios, com as propostas diretas, as indiretas, as risadinhas. Vamos com medo pela rua. Algum dia os homens vão agradecer por isso e se dar conta de que eles também são vítimas

disso.

A primeira foto da exposição traz os dizeres: “Não é a pornografia que é obscena, é a fome que é obscena”. Recentemente performances e exposições no Brasil foram acusadas de pornográficas por setores mais conservadores e uma exposição até foi interrompida. O que você acha desse tipo de intervenção?

O que eu digo primeiro é: "coitados!". Não sabem o que significa respeito, não sabem que o ser humano se distingue pela razão, pela consciência, pela sensibilidade. Essas pessoas não parecem ter nada disso se não respeitam os outros. Um artista está expressando mundos oníricos. É estranho que uma pessoa se assuste, por exemplo, ao ver nos 'Jardins das Delícias', [quadro do pintor Hyeronimous Bosch] uma situação de amor ou prazer e não se assuste com pessoas passando fome na rua. Eles acham que vão a um paraíso por isso, acham que Deus é idiota? Creem em um deus idiota?

pilar del río - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Saramago e Pilar del Río
Imagem: Arquivo pessoal
 

A exposição traz mais a figura do Saramago como homem do que como escritor. Como você definiria o homem com quem conviveu por tanto tempo?

É melhor dizer como ele se definia. O que ele gostava de dizer é que era um humanista compassivo. Evidentemente era um homem de esquerda, era livre, não tinha medo de enfrentar os poderes religiosos, políticos e econômicos. Era um comunista hormonal, porque isso vinha de dentro dele. Era um comunista libertário.

O que você intui que o Saramago acharia da situação atual do mundo?

Não temos que pensar que acharia Saramago se ele já deixou escrito. Ele escreveu o “Ensaio Sobre a Cegueira”. Somos cegos que vendo, não vêem. É verdade que depois do “Ensaio sobre a Cegueira”, Saramago escreveu o “Ensaio sobre a Lucidez”. Neste livro há uma enorme esperança. Há um momento em que os jovens tomam conta da situação.  Saramago confiava muitíssimo na força e honestidade das pessoas jovens, que não estão hipotecadas com o passado.

Faz 20 anos que o Saramago recebeu o Prêmio Nobel. Como foi a reação dele? Era algo com o qual ele se importava muito?

Eu não estava junto com ele. Ele estava a ponto de entrar em um avião em Frankfurt quando fizeram num anúncio dizendo que o estavam chamando pelo telefone, mas a pessoa que fez o chamado não aguentou e falou: 'é que o senhor ganhou o prêmio Nobel'. Ele não sabia o que dizer. Todo mundo começou a dizer que ele não tinha que embarcar porque todos o estavam procurando. E ele protestando dizendo que tinha que ir porque não tinha camisas. [risos]. Quando ele voltou, sozinho pelo corredor que ia até o avião, levando sua maleta, pensou: ‘Me deram o Prêmio Nobel, e daí?’ E a partir desse momento tudo ficou relativizado. Claro, ele ficou feliz, participou de todos os eventos, partilhou a alegria, mas já tinha relativizado tudo aquilo.

Quais são suas impressões do atual momento brasileiro?

Tenho muita pena dos brasileiros e brasileiras. Acho que não mereciam isso. Se eu fecho os olhos e penso no Brasil, penso em 36 milhões de pessoas que, de alguma maneira, foram atendidas por um partido, o PT, e que com todos os seus erros -- porque ninguém é santo --, saíram da pobreza absoluta por um período, mas agora voltaram. A noite do impeachment foi uma das noites mais vergonhosas que eu presenciei. Acompanhei desde Lisboa. Isso não poderia acontecer no século XXI. Não sinto só pela Dilma, a quem eu respeito muitíssimo e considero uma amiga, mas pelos brasileiros que foram enganados.

Você acha que o mundo vive uma onda conservadora?

Quando acabou a Segunda Guerra Mundial houve um movimento fantástico. Todo mundo queria ser progressista. A ONU foi fundada, se faz a Declaração Universal dos Direitos Humanos... Depois disso parece que nós todos fomos dormir. Parece que, desde então, o progresso se resume a ter mais meios, ser mais rico, construir. Nós não reforçamos nossa capacidade ética nem nossa cultura. Somos em linhas gerais seres incultos. Saramago disse que nosso tempo se define por três vetores: indiferença, medo e resignação. Cada dia damos mais um passo à lei da selva.

Você lida com o legado do Saramago de maneira muito próxima. Isso faz com que você tenha mais saudade?

Eu acho que não sinto saudade. Nós fizemos uma vida com os pés no chão. No dia em que decidimos que dividíamos tudo, também vimos que por lei de vida ele iria morrer antes de mim. Por isso decidimos incorporar-nos mutuamente. Eu não me chamo Pilar del Río. Me chamo José Saramago. Eu o tenho vivo em mim.