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Mulheres do campo na mira da reforma da Previdência

Mulheres do MST protestam contra a economia capitalista durante a Rio+20, Conferência da ONU sobre Desenvolvimento Sustentável - Antonio Lacerda/EFE
Mulheres do MST protestam contra a economia capitalista durante a Rio+20, Conferência da ONU sobre Desenvolvimento Sustentável Imagem: Antonio Lacerda/EFE

Laís Modelli (de São Paulo)

Da DW

28/03/2019 10h14

Trabalhadoras já têm dificuldades para comprovar 15 anos de atividade no campo por causa da ausência de documentos e a desigualdade de condições. Proposta de Bolsonaro prevê 20, e elevar idade mínima para 60.Atualmente, trabalhadores rurais que trabalham sozinhos ou em regime familiar são considerados segurados especiais e não precisam contribuir para a Previdência Social. Para se aposentarem, precisam ter idade mínima de 55 anos, se forem mulheres, ou de 60 anos para os homens, além de comprovar 15 anos de trabalho no campo.

O que parece fácil se comparado às exigências feitas aos trabalhadores urbanos tem se tornado um problema cada vez maior para a maioria dos trabalhadores rurais, pois reunir os documentos que comprovem a atividade no campo está cada vez mais difícil, principalmente para as mulheres.

Entre os motivos são a alta informalidade no trabalho rural, a precária organização contábil no campo e a sazonalidade das atividades - muitos trabalhadores migram para a cidade nos períodos entressafras.

A reforma da Previdência Social proposta pelo presidente Jair Bolsonaro, como está hoje, dificultaria ainda mais a situação.

Segundo a advogada especializada em previdência social Daiane Ramiro Nakashima, o INSS nega com cada vez mais frequência a concessão de aposentadoria rural por não aceitar os documentos apresentados pelos lavradores.

"Uma década atrás era mais fácil comprovar o trabalho no campo, mas, nos últimos cinco anos, o INSS se tornou mais rígido, principalmente para as mulheres", diz Ramiro Nakashima. Antes, uma certidão de casamento que tinha 'lavrador' como ocupação do marido já bastava como prova material para a mulher. "Hoje, não é mais assim."

Muitos documentos das mulheres rurais, como certidão de casamento, título eleitoral e certidão de nascimento dos filhos, costumam informar que elas são "do lar", quando, na verdade, trabalham como lavradoras, assim como seus maridos.

"Desde 2008, eu atendi somente uma mulher rural que tinha a certidão de casamento informando que ela era 'lavradora'. Eu até brinquei na época: 'Esse documento é uma relíquia!'", diz Ramiro Nakashima.

O texto apresentado por Bolsonaro ao Congresso prevê a elevação do tempo mínimo de trabalho no campo de 15 para 20 anos. "Se já está difícil comprovar 15 anos de trabalho, imagine 20", afirma Ramiro Nakashima, que trabalha com pedidos de aposentadoria rural no centro oeste de São Paulo, uma região onde a agropecuária e a agricultura familiar são fortes.

"A atual proposta de reforma da Previdência é uma das mais marcadas pela intensificação das desigualdades de gênero", afirma o professor de Direito previdenciário Marcus Orione, da USP. Para o jurista, de todas as trabalhadoras, a rural foi a mais penalizada, pois o texto apresentado por Bolsonaro eleva a idade mínima da mulher rural de 55 para 60 anos e a equipara aos homens do campo.

Segundo a imprensa brasileira, o governo já admite recuar da cobrança previdenciária obrigatória dos trabalhadores rurais e do aumento no tempo mínimo de contribuição de 15 para 20 anos . Mas a ideia seria manter o aumento da idade mínima das mulheres de 55 anos para 60 anos.

Orione destaca que, no caso do trabalhador urbano, não houve equiparação de idades entre homens e mulheres, o que ele vê como uma contradição da proposta. "Dependendo da interpretação constitucional que se der a essa disposição, homens e mulheres passariam a ser tratados 'formalmente' como iguais no ambiente rural, enquanto a própria reforma, na perspectiva urbana, não os entende como 'materialmente' iguais", analisa o professor.

Por causa da dificuldade para reunir documentos que sejam aceitos pelo INSS, um processo de pedido de aposentadoria rural pode durar dois anos, enquanto que um processo urbano não chega a um ano. O processo da última cliente rural de Ramiro Nakashima durou três anos. "Entramos com o pedido de aposentadoria quando minha cliente fez 55 anos. O INSS só concluiu o processo este ano, quando ela já estava com 58 anos."

Para a advogada, outro ponto importante que a proposta de reforma da Previdência Rural desconsidera é a desigualdade de poder no campo, em que as mulheres são minoria na titularidade das terras. O mesmo ocorre com os dados bancários. Segundo Ramiro, é comum a mulher rural não possuir nem mesmo conta corrente em seu nome e, quando tem, os pedidos de crédito especial rural são feitos no nome do marido. "Fica a impressão errônea para o INSS que somente o homem trabalhou", explica.

De acordo com uma pesquisa da ONG Oxfam, pelo menos 87% dos estabelecimentos rurais de todo o Brasil são controlados por homens, e 94% da área rural brasileira está no nome de proprietários homens. Não ter a titulação das terras ou propriedade rural em seus nomes, segundo Ramiro, dificulta ainda mais a tarefa de comprovar o trabalho das mulheres no campo.

Uma pesquisa de 2018, divulgada pela Oxfam e feita com famílias rurais no Rio Grande do Norte, revelou outra desigualdade no campo: enquanto os homens gastaram 11 horas por semana com trabalho doméstico e cuidados familiares, as mulheres gastaram 79,7 horas semanais. Além de fazer comida, cuidar das crianças, limpar a casa, lavar e passar, o trabalho doméstico feminino no meio rural também envolve as tarefas de buscar água e lenha.

"Com jornadas duplas, triplas, as mulheres devem ter idades diferentes e menores que os homens para se aposentarem. Temos que considerar que, no Brasil, não existe como na Alemanha, por exemplo, uma série de proteção aos filhos que fazem com que a maternidade e a paternidade sejam compartilhadas de forma mais equilibrada", defende Orione. "A distinção no momento da aposentadoria é fundamental para reparar essa injustiça da divisão sexual do trabalho."

Ramiro Nakashima argumenta que muitas mulheres rurais perdem a capacidade laboral mais cedo devido a doenças decorrentes das condições de trabalho. "Tive uma cliente que era visível que ela passou a vida exercendo um trabalho penoso. Aos 55 anos, ela já tinha muitas dores musculares e andava com muita dificuldade de tanto agachar e carregar peso. Mesmo assim, o INSS negou o pedido de aposentadoria dela. Mas concedeu ao marido."

As mulheres do campo só conquistaram o direto à aposentadoria em 1988. "Mas elas ainda lutam pelo reconhecimento do seu trabalho. A dificuldade de comprovar os 15 anos de dedicação rural não é só burocrática, mas também porque o trabalho feminino é visto como um não trabalho, um complemento ao trabalho do homem", afirma a educadora popular Sonia Coelho, porta-voz da Marcha Mundial das Mulheres.

Coelho afirma ter constatado um empobrecimento das mulheres no campo desde a aprovação, em 2016, da Emenda Constitucional 95, que congelou por 20 anos investimentos públicos em saúde, educação e combate à violência.

"Programas que beneficiavam diretamente as mulheres rurais e contribuíam para a construção da autonomia econômica delas estão sendo descontinuados", diz Coelho. "É o caso do Programa de Aquisição de Alimentos e do Programa de Alimentação Escolar. Através deles, muitas mulheres vendiam sua produção diretamente ao poder público para abastecer hospitais, creches, escolas."