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"Apoiar discurso de ódio mata novamente Marielle", diz viúva da vereadora

Mônica Teresa Azeredo Benício, viúva de Marielle Franco - Elisângela Leite/Anistia Internacional
Mônica Teresa Azeredo Benício, viúva de Marielle Franco Imagem: Elisângela Leite/Anistia Internacional

João Soares

Da Deutsche Welle, no Rio de Janeiro

14/11/2018 15h09

Há exatos oito meses, a vida da arquiteta Mônica Benício foi virada do avesso.

Na noite de 14 de março, sua companheira, a vereadora Marielle Franco, foi brutalmente assassinada no Rio de Janeiro. Em pouco tempo, Mônica perdeu 14 quilos, e foi obrigada por um amigo a tomar suplementos alimentares. Durante três meses, esta foi a base de sua alimentação.

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Com o apoio de uma rede de amigos e acompanhamento psiquiátrico, ela dedica todo o seu tempo à luta por uma resposta para a execução de Marielle e à preservação de seu legado.

Em entrevista à "DW Brasil", Mônica afirma que a eleição de mulheres negras nos legislativos estadual e federal é a melhor resposta ao silenciamento da vereadora. Porém, ficou em choque ao ver as imagens da destruição da placa em sua homenagem no centro do Rio.

"Eu sou tão ingenuamente otimista que, quando vi a foto, achei que era montagem. Tomei remédio para dormir, não conseguia acreditar", diz. Embora repudie a eleição de Jair Bolsonaro (PSL) e Wilson Witzel (PSC), governador eleito no Rio que discursou no ato em que a placa foi quebrada, ela se mostra otimista com a postura sinalizada pelo futuro ministro da Justiça, Sérgio Moro.

"Tenho muitas críticas a ele, mas reconheço que, pouco depois de aceitar o convite para ministro da Justiça, disse que é um crime que precisa ser solucionado. No lugar dele, eu estaria muito preocupada e empenhada. Se ele tem toda essa imagem do grande justiceiro brasileiro, vai ter que dar resposta caso essa pasta pare na mesa dele", afirma.

DW Brasil: Qual é a sua posição sobre a abertura de um inquérito federal sobre a investigação do caso pela Polícia Civil do Rio de Janeiro?

Mônica Benício: Por volta do quinto mês após o assassinato, eu fiz pronunciamentos manifestando confiança no trabalho da Polícia Civil, sobretudo no Giniton Lages, delegado que está à frente do caso e não tem precedentes de corrupção. Achava que a Polícia Civil precisava do seu tempo para trabalhar. O caso estava dentro do Rio, e a gente conseguia acompanhar de perto. Mas, embora a investigação corra sob sigilo, isso é diferente de silêncio, e isso é tudo o que vem sendo apresentado a nós pelas autoridades.

Chegou a um ponto em que eu me convenci que o Rio de Janeiro não ia me entregar a resposta pela participação dos agentes do Estado. Isso está dado desde o início, mas eu achei que a equipe técnica da Polícia Civil fosse capaz de transpor essas barreiras e dificuldades. Se a gente chega a oito meses sem nenhum indício de que vamos responder em 2018 quem matou a Marielle, para mim, não vai responder. Raquel Dodge tinha feito um pedido de federalização do caso, negado por Eduardo Gussem, procurador-geral de Justiça do Rio.

Depois disso, fui procurar todos que poderiam somar nesse pedido de federalização. O ministro Raul Jungmann sempre foi muito solícito, se colocou bastante empenhado desde o início. Depois dessa pressão que continuamos fazendo, já passado todo esse tempo, eles conseguiram que a Polícia Federal investigue a investigação. Se em quase oito meses eles não responderam, tem alguma coisa errada.

Você ainda acredita que a investigação trará uma resposta?

Eu não tenho a menor dúvida de que a resposta virá, porque o Brasil, hoje, deve satisfação ao mundo. A preocupação, inclusive, é que entreguem a pessoa correta. No início, tudo estava se encaminhando para haver um bode expiatório, com a finalidade de mostrar que resolveu e virar a página. Eu fui incansável, na Europa, América Latina, denunciando que essa possibilidade era concreta, e precisávamos das autoridades internacionais somando forças para pressionar o Estado brasileiro a acompanhar essa investigação e entender o que de fato está acontecendo.

A essa altura do campeonato, não tínhamos mais que estar discutindo que instância de Poder vai investigar. Deveria haver uma força-tarefa nesse sentido. O que a gente vê é uma briga de egos entre Poderes para saber quem vai fazer ou deixar de fazer. Enquanto isso, passamos vergonha todos, porque a vergonha é coletiva. Eu me coloco a favor da federalização porque é a única forma de ter algum lampejo para chegarmos à resolução desse caso.

Como é a reação das pessoas quando você fala sobre o caso Marielle fora do Brasil?

Quando a gente fala sobre a situação política do Brasil no exterior, as pessoas acham que é mentira, coisa de série americana. Na minha última viagem à Europa, estávamos há sete meses sem respostas, e elas simplesmente não entendem como não se sabe o que houve no caso Marielle. Além disso, ficam chocadas ao ver que, nesse contexto, elegemos um presidente racista, homofóbico, machista. Meu papel nesse sentido era fazer uma forte denúncia do tipo de candidato que estava quase sentando na cadeira da Presidência e como isso é um perigo para a democracia, além do que representa a execução da Marielle e a falta de respostas para o caso durante todo esse tempo.

A Marielle era uma mulher preta, favelada, lésbica, que tinha no corpo dela todas as pautas de direitos humanos que ela defendia. A única coisa que a gente respeita no Brasil é poder, e nem o título de parlamentar conseguiu proteger a Marielle, porque ela é esse corpo descartável na sociedade brasileira. Por tudo isso, pensaram que ela poderia ser descartada dessa forma tão violenta, como se ninguém fosse notar. A imagem dela foi para a porta da prefeitura de Paris e é reproduzida daqui a Tóquio. Infelizmente, a Marielle salva mais vidas morta do que quando estava vida. Este era o objetivo dela. Isso, de certa forma, traz algum conforto para dizer que não foi em vão. A minha dor é de um sentimento muito particular. Mas se eu for olhar para tentar encontrar algum tipo de esperança e não desesperar, colocar uma bala na cabeça, é entender que não foi em vão e precisa ter continuidade.

Em agosto, você pediu proteção à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA após relatar ter sido perseguida de carro e ameaçada de morte. Como está essa situação hoje?

No período eleitoral, piorou um pouco. Pessoas que eram a favor do Bolsonaro se sentiram legitimadas para reproduzir discurso de ódio e violência presentes em suas falas. A população LGBT sofreu muito, não só por agressões físicas, mas também agressões verbais e morte. De novo, tivemos as mulheres nesse cenário lamentável, colocadas em posição inferior, e a população negra sofrendo racismo violento. Os xingamentos a mim na rua aumentaram consideravelmente. Eu uso esta blusa com a estampa "Lute como Marielle”. Uma vez, um cara me parou no aeroporto para dizer: "lutar como alguém que está morto é fácil”.

Tenho uma série de filtros nas minhas redes sociais para evitar ataques de haters. Fiz o pedido de medida cautelar à OEA quando houve uma situação em que fui perseguida de carro na rua. Ao protocolá-lo, anexei também as manifestações de ódio presenciais e virtuais, ofensas que diziam "não precisa ficar triste, sapatão, daqui a pouco você morre também”, coisas nesse sentido. A partir do momento em que estou dentro do programa da OEA, é cobrado do Estado brasileiro que resolva o que me colocou em risco – justamente o assassinato da Marielle. É mais uma forma de a OEA fazer pressão para que o Estado resolva o crime. Se alguma coisa acontece comigo, a culpa é do Estado brasileiro.

Rodrigo Amorim (PSL-RJ), que rasgou a placa em homenagem a Marielle, foi o deputado estadual mais votado no Rio. Como você se sentiu ao ver aquela imagem?

Eu sou tão ingenuamente otimista que, quando vi a foto, achei que era montagem. Não tinha visto o vídeo, e mandei mensagem para a Manuela D'Ávila, que tinha postado a imagem, perguntando se tinha certeza que não era fake. Ela pediu desculpas, falou que não queria que eu soubesse dessa forma e me mandou o link para o vídeo. Eu tomei remédio para dormir, não conseguia acreditar. É tão absurdo, mas tão absurdo. E falta de humanidade. A justificativa vinha pelo dano ao patrimônio público. Era uma placa colada, em homenagem a uma mulher que foi executada barbaramente e tinha um projeto de uma sociedade mais justa e igualitária para todos.

Esse gesto me deixou muito chocada. Eu me recusei a acreditar. Todas as vezes em que alguém produz notícias falsas, deixa Bolsonaro chegar ao poder ou apoia discurso de ódio mata novamente a Marielle. Eu me preocupo com as pessoas que fazem do Rodrigo Amorim o candidato mais votado para deputado estadual no Rio e colocam o Witzel no poder. Ele diz que repudia a ação, mas estava no ato fazendo falas ao lado do Rodrigo, que segurava a placa quebrada.

Nesse sentido, você está pessimista sobre a elucidação do crime, caso não aconteça antes de 2019?

Obviamente, havia uma preocupação muito grande quanto a isso, sobretudo porque o Mourão, vice-presidente eleito, disse que estávamos "enchendo o saco” com o caso Marielle. Witzel disse que vai tratar o caso como um homicídio qualquer. Drama por drama, na mão do Rio de Janeiro, está perdido há oito meses, nada avançou. Se for federalizado, ficará nas mãos do Moro. Eu tenho muitas críticas a ele, mas reconheço que, pouco depois de aceitar o convite para ministro da Justiça, disse que é um crime que precisa ser solucionado. No lugar dele, eu estaria muito preocupada e empenhada. Se ele tem toda essa imagem do grande justiceiro brasileiro, vai ter que dar resposta caso essa pasta pare na mesa dele. Responder não é mais do que obrigação, mas entregar esse resultado para o mundo vai representar um prestígio. Com toda a conjuntura pessimista, diante dessa fala dele, há que se ter algum tipo de otimismo.

Novas mulheres negras se elegeram para os legislativos estadual e federal, entre elas, ex-assessoras da Marielle. É uma conquista?

Sem dúvidas, foi a resposta mais bonita que o 14 de março poderia ter. A gente respondeu, na urna, ao que a Marielle disse sem ter dimensão, no 8 de março, quando falou que não seria interrompida. Essa continuidade do time de mulheres pretas eleitas é legado da Marielle. Cada menina da favela que olha para a Marielle e vê que é possível chegar à universidade, fazer mestrado e se eleger parlamentar é um legado dela. A votação expressiva de pessoas como a Talíria Petrone para deputada federal, além da Mônica Francisco, Renata Souza e a Dani Monteiro na Alerj, estavam ali, tão próximas, é muito simbólica no cenário do Rio de Janeiro. Não é uma resposta de violência, que reproduz discurso de ódio, nem essa política velha que não nos representa. A Marielle defendia uma política pautada no afeto, construída com as pessoas e para elas.

Como você faz para seguir em frente?

Eu fazia terapia antes, mas entrei em um processo de autossabotagem, de abandonar tudo que é relacionado a autocuidado. Também não me permitia nenhum prazer, incluindo comer. Quando cheguei aos 49 quilos, depois de perder 14, um amigo me obrigou a tomar suplementos alimentares, senão ia me internar. Passei três meses a base disso e Gatorade. Mas tenho acompanhamento psiquiátrico. Nos três primeiros meses, eu estava sob efeito de tantos remédios, que tenho apenas flashes da minha vida. Minha impressão é de que uma hora eu acordei e era figura pública. As pessoas me reconheciam na rua, sem eu saber por quê. Eu fazia falas em níveis de estresse muito alto, e imediatamente depois não tinha a menor lembrança. Isso tudo era muito confuso. De fato, essa militância intensa é uma forma de ainda estar com ela. Uma forma de senti-la perto e ocupar muito a cabeça para não ter tempo de pensar.

O único momento em que eu pensava sobre isso era quando tinha que voltar para casa. Até o sexto mês, eu tinha o apoio da liga das babás, um grupo de amigos que se revezava para dormir comigo todo dia da semana. Nos momentos mais difíceis, que eram chegar em casa e acordar, sempre tinha um amigo. Depois disso, os ritmos de viagem se intensificaram mais, e eu nunca ia sozinha. Agora, já está melhor isso. O ritmo é tumultuar bastante a cabeça para não ter tempo de pensar. A parte mais difícil virá em breve. Estou morando na mesma casa, que ficou muito grande e cara só para mim. Agora, tenho que rever isso, pelo custo financeiro e emocional. Tem sido muito angustiante pensar que vou ter que desmontar a casa. Depois de 14 anos com muitas idas e vindas, a gente finalmente começou a retomar o relacionamento no final de 2015 e só em janeiro de 2017 a gente veio para essa casa. Foram um ano e três meses de finalmente ter realizado o sonho de morar junto, da família. Na hora que bater a porta desmontando a casa vai ser bem difícil.