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Denúncias de discurso de ódio online dispararam no 2º turno das eleições

BBC
Imagem: BBC

Lígia Mesquita

Da BBC News Brasil em Londres

09/11/2018 16h00

O período do segundo turno das eleições deste ano, entre 7 e 28 de outubro, teve um aumento significativo no número de denúncias de discurso de ódio ou intolerância na internet, segundo levantamento da ONG SaferNet.

Os dados, obtidos com exclusividade pela BBC News Brasil, mostram que durante os 21 dias que separaram as duas votações, as denúncias com teor de xenofobia cresceram 2.369,5%, de apologia e incitação a crimes contra a vida, 630,52%, de neonazismo, 548,4%, de homofobia, 350,2%, de racismo, 218,2%, e de intolerância religiosa, 145,13%.

O número total de denúncias mais que dobrou em relação ao pleito de 2014: passou de 14.653 para 39.316 neste ano.

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Segundo o Ministério Público Federal, é crime postar na internet, em qualquer plataforma, mensagens que incitem a prática de crimes, "pregando a violência ou o extermínio de grupos e minorias, ou divulgando mensagens de cunho racista".

A SaferNet, que atua desde 2006 na promoção e defesa dos direitos humanos na internet, recebe de maneira anônima e por meio de uma plataforma digital denúncias de atividades cibernéticas que violem esses princípios.

A ONG atua em cooperação com o Ministério Público Federal, e a tipificação desses crimes é feita de acordo com o que está no Código Penal e na legislação brasileira.

O salto no número de denúncias de crimes de xenofobia no segundo turno ocorreu, segundo a ONG, principalmente por causa do resultado do primeiro turno das eleições, quando o peso dos votos do Nordeste, em sua maioria pró-Fernando Haddad (PT), fez com que Jair Bolsonaro (PSL) não fosse eleito já naquele dia.

Após o resultado, as redes sociais foram invadidas por comentários como "Nordestino não é gente", "Se o nordestino tivesse a cabeça redonda pensaria melhor" e "Vamos separar o Nordeste do resto do Brasil".

O site denuncie.org.br, que recebe as queixas, registrou 8.009 denúncias de xenofobia entre 7 e 28 de outubro, contra 338 entre 16 de agosto e 7 de outubro.

No mesmo período, as denúncias de apologia e incitação a crimes contra a vida (apologia a tortura, linchamentos, violência física, assassinato etc.) passaram de 1.746 para 11.009; as de homofobia/LGBTfobia, de 422 para 1.478; as de neonazismo (intolerância com base na ideologia nazista de superioridade), de 254 para 1.393; as de racismo, de 531 para 1.159, e as de intolerância religiosa, de 195, para 283.

A única categoria que apresentou uma leve queda no período foi a de violência ou discriminação contra as mulheres. Passou de 1.437 denúncias no primeiro turno para 1.232 no segundo turno, uma queda de 14,26%.

A maior parte do conteúdo denunciado por meio da plataforma da SaferNet estava no Facebook. Entre 16 de agosto e 28 de outubro, 13.592 denúncias foram feitas tendo URLs (os endereços) da rede social. Em segundo lugar vem o Twitter, com 1.509, seguido de Instagram, com 1.088, e do YouTube, com 400.

O Ministério Público Federal tem acesso a todas as denúncias feitas na plataforma da ONG, e a partir desse banco de dados faz suas investigações.

Para o presidente da SaferNet, Thiago Tavares, o aumento na quantidade de denúncias de discurso de ódio reflete a polarização política do País.

"A internet é caixa de ressonância da sociedade. Essas eleições foram muito polarizadas, e isso se refletiu nas redes sociais", diz Tavares à BBC News Brasil.

Segundo ele, o crescimento de denúncias das eleições de 2014 para 2018 também se deve à "produção e difusão em escala industrial de conteúdos enganosos criados para incentivar o ódio, o preconceito e a discriminação".

Para Tavares, a alta circulação de notícias falsas contribuiu para esse aumento do discurso de ódio online.

"Boa parte das fake news tinham alvos claros: mulheres, negros, pessoas LGBT. Então, não surpreendeu que esses grupos fossem vítimas desses ataques", fala.

De acordo com o representante da ONG, houve mais ataques a mulheres no primeiro turno, principalmente por causa do movimento #EleNão - na ocasião, milhares de mulheres foram às ruas pedir para que não se votasse em Jair Bolsonaro, hoje presente eleito, acusando-o de ser misógino e homofóbico, o que ele nega.

Como funciona

Qualquer pessoa pode denunciar de maneira anônima um conteúdo que tenha visto na internet e que julgue ser discriminatório, ou que faça apologia à violência contra grupos específicos. Basta entrar no site denuncie.org.br e colocar a URL - o link com o endereço da página/post onde viu o material.

A partir dessas denúncias, a plataforma faz uma varredura digital tentando coletar o maior número possível de evidências, como fotos das páginas, por exemplo.

"Nós não investigamos nada, nem podemos. Só coletamos informações públicas sobre crimes de violações de direitos humanos na internet", diz Tavares.

Tavares explica que nem todo conteúdo denunciado é um crime. Muitas vezes, os materiais são apenas comentários de mau gosto.

Quem vai averiguar essas denúncias e eventualmente instaurar um inquérito criminal é o Ministério Público Federal. Após essa investigação, se o conteúdo for considerado criminoso, ele é retirado do ar e o seu autor, processado.

Crime x Opinião

A lei 7.716/89 traz as definições do que é crime de discriminação e preconceito cometido via meios de comunicação.

São elas: "Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional; fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo".

As penas podem chegar a cinco anos de reclusão, além de multas.

A procuradora Fernanda Domingos, do grupo de ataques cibernéticos do Ministério Público de São Paulo, explica que não há uma tipificação para crimes de ódio ou intolerância no Brasil, mas diz que qualquer discurso de ódio que se enquadre nas situações descritas na lei citada anteriormente é crime.

"O discurso do ódio, mesmo quando não é crime, como a homofobia, deve ser retirado dos meios de comunicação porque ofende a dignidade da pessoa humana, princípio previsto na Constituição Federal", afirma Domingos à BBC News Brasil.

A procuradora reforça que nem todos os comentários que as pessoas considerem de mau gosto ou preconceituosos são necessariamente criminosos, ou incitam, por exemplo, a violência.

"Com essa questão da polarização da eleição, por exemplo, fazemos ponderação para separar o que é liberdade de expressão, mesmo que de mau gosto, do que é crime de ódio. Para ver o que é picuinha, piada de mau gosto, e o que é mesmo delito de discriminação e ódio. Em 2010, aquele tuíte daquela estudante, Mayara, era crime", fala.

A procuradora se refere ao caso da então estudante de direito Mayara Petruso, que, no pleito de 2010, tuitou "Nordestino não é gente. Faça um favor SP, mate um nordestino afogado".

Petruso foi julgada e condenada a 1 ano, 5 meses e 15 dias de prisão, convertidos em trabalho social.

A procuradora diz que o Ministério Público faz uma triagem de todas as denúncias enviadas pela SaferNet, mesmo que isso demore um tempo.

As que são investigadas primeiramente, segundo ela, possuem conteúdos que incitam a violência física.

"Colhemos provas, buscamos os dados dos Ips (Internet protocol, a identificação de cada computador), tiramos fotos, fazemos tudo. Após uma triagem inicial, podemos ou não abrir inquérito policial e pedir busca e apreensão do computador ou outro equipamento de onde o post/vídeo tenha sido feito", diz Domingos.

"Se há flagrante, se o tuíte, por exemplo, está no computador ou no celular da pessoa, ela vai presa na hora", explica.

Domingos, no entanto, não sabe detalhar quantas das denúncias recebidas por meio da SaferNet acabam sendo investigadas e tendo inquérito instaurado pelo Ministério Público.