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As mudanças na sociedade irlandesa que levaram ao fim da lei antiaborto

Mulheres comemoram resultado de referendo na Irlanda, que representa grande mudança na conservadora sociedade do país - Getty Images
Mulheres comemoram resultado de referendo na Irlanda, que representa grande mudança na conservadora sociedade do país Imagem: Getty Images

Shane Harrison - Da BBC na Irlanda

26/05/2018 19h03

O papa Francisco tem planejada uma viagem à Irlanda daqui a três meses. E deve encontrar um país que, apesar de forte tradição católica e socialmente conservador, está revertendo aspectos importantes que foram legado de uma visita papal prévia.

Foi em 1983, quatro anos após uma trifunal visita do então papa João Paulo 2º, que o povo irlandês votou para colocar na Constituição a chamada Oitava Emenda.

Essa emenda igualava os direitos dos não nascidos aos de suas mães e, na prática, proibia o aborto em praticamente todos os casos - exceto se houvesse risco de vida para a mãe.

Em novo referendo na sexta-feira, porém, os irlandeses votaram por derrubar a Oitava Emenda. Segundo os resultados divulgados neste sábado, foram 66,4% dos votos a favor do fim da legislação, e 33,6% contra.

Agora, caberá ao Parlamento propor e votar uma lei de caráter mais liberalizante ao aborto - em uma mudança "sísmica" na sociedade irlandesa. Há relatos de que o governo planeja apresentar até o final deste ano uma lei que autorize o acesso irrestrito ao aborto nas 12 primeiras semanas de gestação.

Em resposta, o grupo ativista Salve a Oitava Emenda afirmou que o resultado deste sábado é "uma tragédia de proporções históricas" e prometeu continuar a protestar contra o aborto. "As crianças não nascidas não têm mais seu direito à vida reconhecido pelo Estado irlandês", afirnou John McGurik, porta-voz do grupo.

O resultado deste sábado se segue a outra mudança social: três anos atrás, também por referendo, a Irlanda aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

O premiê Leo Varadkar, que fez campanha pela liberalização do aborto, afirmou que se trata de "um dia histórico para a Irlanda" e que uma "revolução silenciosa" ocorreu no país nas últimas décadas. Também afirmou que o resultado mostra que os irlandeses "confiam e respeitam as mulheres para tomarem as próprias decisões e fazerem as próprias escolhas".

'Exportar o problema do aborto'

Varadkar havia dito também que não queria mais que seu país "exportasse" a questão do aborto à vizinha Grã-Bretanha.

Isso porque estima-se que, atualmente, 9 irlandesas viajem diariamente ao território britânico - onde o aborto é legalizado - para interromper suas gestações. Outras quatro irlandesas compram diariamente pílulas abortivas pela internet, sem supervisão médica, arriscando-se a uma pena de prisão de até 14 anos.

Caso de Savita Halappanavar, que morreu após ter tido pedido de aborto negado, foi um dos que ajudaram a mudar a opinião pública irlandesa - Getty Images - Getty Images
Caso de Savita Halappanavar, que morreu após ter tido pedido de aborto negado, foi um dos que ajudaram a mudar a opinião pública irlandesa
Imagem: Getty Images

Desde o referendo de 1983, estima-se que mais de 170 mil irlandesas tenham buscado fora do país uma forma de realizar a interrupção da gravidez.

E alguns casos particulares tiveram um papel crucial em mudar a opinião pública.

Houve casos polêmicos de vítimas de estupro e incesto que não puderam pôr fim legalmente às suas gestações em território irlandês.

Houve também a história de uma mulher grávida que não tinha mais atividade cerebral e foi temporariamente mantida viva - contrariando a vontade de sua família - até que a Justiça decidisse que o feto que ela carregava não sobreviveria a uma cesárea.

E muitas mulheres que receberam diagnósticos de problemas fatais em seus fetos disseram que só puderam passar por um aborto por terem viajado à Grã-Bretanha.

Em 2012, o caso da dentista indiana Savita Halappanavar ampliou esse debate. A indiana solicitou um aborto em um hospital da cidade irlandesa de Galway ao notar que sua saúde se deteriorara por conta de uma sépsis, mas seu pedido foi negado, uma vez que se avaliou que sua saúde não estava em risco naquele momento e ainda havia batimentos cardíacos do feto. Tanto Savita quanto seu bebê acabaram morrendo.

Papa João Paulo 2º em visita à Irlanda em 1979; viagem foi apontada como propulsora da lei antiaborto que seria aprovada quatro anos depois - Pacemaker - Pacemaker
Papa João Paulo 2º em visita à Irlanda em 1979; viagem foi apontada como propulsora da lei antiaborto que seria aprovada quatro anos depois
Imagem: Pacemaker

Neste sábado, praticamente todas as regiões do país votaram a favor do fim da Oitava Emenda. E praticamente todos os grupos sociais apoiaram a mudança legal, exceto pela população acima de 65 anos.

Mas a força motriz por trás da votação foram as jovens mulheres urbanas, que fizeram forte campanha pelo sim.

Sinn Féin, o tradicional partido republicano irlandês, tem um slogan em irlandês: "Tiocfaidh ár lá", que pode ser traduzido como "nosso dia vai chegar".

Na atual campanha, foi adotado um novo slogan político: "Tiocfaidh ár mná", ou "aí vêm as nossas mulheres".

Agora, a líder do Sinn Féin Mary Lou McDonald, bem como grupos pró-direitos reprodutivos, têm dito que querem expandir a mudança legal também à vizinha Irlanda do Norte - que pertence ao Reino Unido e é a única região deste a não permitir o acesso irrestrito à interrupção da gravidez.

Papel da Igreja Católica

Para a Igreja Católica, que foi peça importante na aprovação da Oitava Emenda em 1983 e havia instado a população a proteger a medida no referendo desta sexta, o resultado é um grande revés.

A instituição já vivia uma crise na Irlanda nos últimos anos, após revelações de que bispos haviam deixado de reportar as autoridades os padres acusados de pedofilia.

Outro abalo se deve a acusações de que antigos abrigos para mulheres grávidas solteiras comandados por freiras tenham cometido crimes. Em um dos casos mais notórios, na cidade de Tuam, foi encontrada uma vala comum com diversos corpos de bebês, aparentemente enterrados ali nos anos 1950.

Houve também acusações de que esses abrigos realizavam adoções forçadas, sem o consentimento das mães biológicas, algumas vezes em troca de dinheiro.