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Mulheres testemunham sobre aborto na América Latina

"Nós querem mortas", diz cartaz de manifestantes pró-aborto. Milhares de pessoas protestam em frente ao Congresso Nacional em Buenos Aires, Argentina, pela legalização do aborto - Isis Medeiros/Farpa/Folhapress
"Nós querem mortas", diz cartaz de manifestantes pró-aborto. Milhares de pessoas protestam em frente ao Congresso Nacional em Buenos Aires, Argentina, pela legalização do aborto Imagem: Isis Medeiros/Farpa/Folhapress

da AFP, em Montevidéu

04/09/2018 11h42

Legalizar, ou não, o aborto? A recusa do Senado à lei do aborto na Argentina não calou o debate e, ao contrário, o fez crescer como nunca na América Latina, onde majoritariamente se criminaliza sua prática livre e onde apenas um em cada quatro abortos é seguro.

Nessa região, a cada ano, 760.000 mulheres recebem assistência médica por complicações relativas a abortos inseguros, como hemorragia e infecções, segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do Guttmacher Institute. Muitas delas não procuram ajuda a tempo, porém, por medo, e acabam morrendo.

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A Guatemala poderá aprovar uma lei que endurece as penas pela interrupção da gravidez, a ponto de punir com prisão os abortos espontâneos.

Já o Supremo Tribunal Federal do Brasil estuda um recurso para que o aborto deixe de ser considerado um delito antes da 12ª semana de gravidez. E, no Chile, várias deputadas apresentaram recentemente um projeto de lei de aborto livre até a 14ª semana.

Cinco mulheres relataram à AFP suas experiências em países da América Latina com legislações que vão da proibição total, como El Salvador, onde um aborto espontâneo pode implicar penas de prisão, até o Uruguai, onde o Estado facilita a interrupção da gravidez a pedido da mulher.

Brasil

'Se estivesse legalizado, o sofrimento seria menor'Gregória (nome fictício) é uma estudante de veterinária de 25 anos que mora na periferia do Rio de Janeiro. Quando engravidou, comprou ilegalmente, através de um amigo, misoprostol, um medicamento usado para induzir o trabalho de parto.

"Meu maior sentimento foi de desespero, de não saber o que fazer, achando que ia morrer. Eu não sabia como meu corpo ia reagir, eu estava com muito medo de morrer".

"Se eu tivesse ido ao hospital, eles teriam me tratado mal. Eu conheço pessoas que foram ao hospital e foram tratadas de forma horrível. Então, eu disse a mim mesma: se eu morrer, eu vou morrer aqui, deitada. Eu comecei a sangrar, uma dor insuportável, que não desejo ninguém".

"Como não é legal, eu não tinha muitas opções de para onde ir. Se fosse legalizado, acho que seria menos sofrimento. Até hoje, falar sobre o que eu vivi é difícil".

"Não falamos com muitas pessoas, porque as pessoas discriminam você. Muita gente não aceita o fato de que a mulher engravida e não quer o filho".

México

'Nenhuma lei deve decidir o que fazer com seu corpo'O aborto na Cidade do México é legalizado e gratuito até a 12ª semana de gravidez desde 2007. No restante dos 31 estados, é permitido em casos de estupro, ou de perigo de vida da mulher. Em Guanajuato, a prática é punível com pena de prisão de até 30 anos.

Monse Castera tem 32 anos, é uma promotora de arte e abortou três vezes legalmente.

"O primeiro foi na França, aos 21 anos. Foi uma curetagem, muito profissional, aquela em que me senti mais segura. A segunda e a terceira vezes foram na Cidade do México, quando o aborto foi legalizado, aos 23 e 24 anos".

"A segunda vez foi em uma clínica da ONG Marie Stopes. Eles são super-respeitosos, fazem você se sentir segura, e as instalações são boas. Foi com pílulas. O terceiro foi em uma clínica privada e ainda assim foi uma experiência desagradável (por aspiração).

Não foram experiências que me causem culpa, ou dor emocional. Eu cresci em uma família ateia e não tenho ideias religiosas que me façam sentir culpada. O aborto não é algo de que tenhamos que nos envergonhar, temos de evitá-lo, mas o que temos de evitar é que haja crianças indesejadas".

"Sinto uma tristeza infinita de que, em 2018, uma mulher não possa decidir sobre seu próprio corpo. Se os homens pudessem engravidar, essa discussão não estaria sobre a mesa. Nenhuma lei deve dizer o que você faz, ou não faz, com seu corpo".

Uruguai

'Abortar é uma decisão pessoal': Mariana Rodríguez, uma auxiliar administrativo de 27 anos, abortou no sistema hospitalar do Uruguai, onde a prática foi legalizada em 2013.

"Nunca esteve nos meus pensamentos ser mãe. Nem me sinto preparada psicologicamente, nem tenho instinto maternal. A decisão sempre foi a mesma desde o dia 1".

"O processo foi muito bom, me senti muito acompanhada e não me senti julgada. Durou cerca de duas semanas. Lá te dão dois comprimidos: um, você toma à noite, e o outro, no dia seguinte. Não tentaram me convencer. A psicóloga me perguntou se eu estava segura, e dei meus argumentos".

"Tive a sorte de não ter que ouvir (sobre os métodos caseiros) sobre ervas, sobre agulha de tricô... Agradeço que tenha sido lei no Uruguai. Está perfeito como está implementado e tem que ser exemplo para outros países".

"Me parece que é um debate muito pessoal: como cada um percebe esse feto, embrião, bebê, essa concepção de mãe, esse estereótipo de que a mulher nasceu para ser mãe... Mas tem que ser lei. Nisso não há ponto de discussão".

El Salvador

'A Justiça nos discrimina por sermos mulheres' Desde 1998, em El Salvador, o aborto em qualquer circunstância - mesmo em casos espontâneos - é considerado homicídio qualificado e pode ser punido com até 40 anos de prisão.

Elsi Rosales vive no campo e tem 27 anos, um filho de 3 e o trauma de uma gravidez que terminou com o bebê morto e ela na cadeia. Depois de passar dez meses na prisão, foi solta, porque não se conseguiu provar se que tratou de uma morte induzida.

"Estava grávida, com 38 semanas de gestação. Já tenho um filho de três anos que nasceu de cesárea. Então, não sabia o que eram as dores do parto".

"Nesse dia, trabalhei no campo, e os trabalhos do campo são duros, e fiz muita força... Senti uma dor na parte baixa das costas. Não sabia o que estava acontecendo. Me deu vontade de ir ao banheiro e fui e, com a força que eu fiz, minha filha nasceu e caiu em uma fossa (séptica). Nesse momento, eu desmaiei".

"Me levaram para o hospital com uma hemorragia. O médico que me atendeu perguntava o que tinha acontecido e fez a denúncia. Me levaram para a cadeia. Fiquei um mês presa lá e, depois, me levaram para um presídio (acusada de homicídio)".

"Precisava voltar pro meu filho de três anos. Por isso, me doía quando diziam que eu podia receber 30 anos de prisão".

"Eu vou me somar à luta (pela reforma da lei penal e que se permita o aborto por quatro razões), para que as mulheres que estão na prisão sintam que não estão sozinhas. Esse sistema de Justiça nos discrimina pelo único fato de sermos mulheres".

Cuba

'É um direito, mas não um jogo'Josefa tem 46 anos, é professora e vive em Havana. Tem dois filhos e fez três abortos em Cuba, país que se tornou pioneiro na região, em 1965, ao legalizar sua prática voluntária até a oitava semana de gestação.

"Fiquei grávida aos 23 anos. Tive meu primeiro filho e, em tese, não podia ter mais. Mas também me cuidava. Quando fiquei grávida, foi uma surpresa: estava estudando e decidi abortar. E assim aconteceu três vezes. Depois tive outra filha que agora tem 12 anos".

"Em Cuba, é meu direito escolher quando posso ter um filho. Não é um método anticoncepcional. Essas três vezes passaram com tempo entre uma e a outra (durante uma década). Os abortos aconteceram sempre durante um período de gestação curto. Foram três curetagens, sempre no mesmo hospital".

"Em Cuba, temos esse direito, mas não deixo de reconhecer que muita gente adota como um método anticoncepcional e faz isso indiscriminadamente, e isso pode trazer problemas de saúde muito sérios. Tive uma amiga que, por fazer uma certa quantidade de curetagens, não pôde ter filhos e hoje se arrepende".

"Temos o direito a escolher, mas também temos que ter consciência de que não é um jogo".